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A tradução poética de 'A flor e a náusea' na Rio-2016


Um dos momentos mais emocionantes da cerimônia de abertura da Olimpíada Rio-2016 foi a declamação dos versos finais do poema "A flor e a náusea", de Carlos Drummond de Andrade, por ninguém mais ninguém menos que Fernanda Montenegro e Judi Dench, que deram ao clássico suas interpretações em línguas portuguesa e inglesa, respectivamente. Eis os versos originais selecionados:

Uma flor nasceu na rua! Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego. Uma flor ainda desbotada ilude a polícia, rompe o asfalto. Façam completo silêncio, paralisem os negócios, garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe. Suas pétalas não se abrem. Seu nome não está nos livros. É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde e lentamente passo a mão nessa forma insegura. [...] É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

Sob arranjos de Central do Brasil, filme brasileiro de 1998 que rendeu a Fernanda Montenegro a indicação ao Oscar de Melhor Atriz, a locução foi acompanhada, também, por uma montagem de cenas envolvendo natureza, cultivo e nascimento. A seguir, o vídeo desse momento da cerimônia.

Em um crescendo que culminou na mescla das vozes das duas atrizes na última palavra do poema (ódio /hatred), o instante mágico! Não demorou e os gringos já compartilhavam na internet o poema traduzido para o inglês. A versão que circulou, porém, não foi aquela apresentada na cerimônia. Afinal de contas, é um poema notório e traduzido já faz algum tempo.


Todavia, a qualidade da mais recente versão me fez querer ir à cata da tradução olímpica (cuja autoria, infelizmente, não localizei) e fazer uma breve análise dos textos. Não é preciso dizer que traduzir poesia é um desafio insólito e analisar a tradução poética é perambular em solos os mais áridos. Ainda assim, a oportunidade era única. Nem sempre temos uma Olimpíada em casa e um poeta nosso é interpretado assim para o mundo, em duas das vozes mais intrigantes desta e doutras gerações.

Assim, compartilho algumas reflexões acerca das escolhas tradutórias e seus efeitos na versão do poema em inglês, sem esperar, obviamente, ter juízo definitivo sobre nada. Afinal, independentemente da língua ou do terreno, a beleza poética parece nascer teimosa e irresistivelmente como a flor de Drummond...

Uma flor nasceu na rua!

A flower has sprouted in the street!

Para Drummond, uma flor nasceu. No verso traduzido, especifica-se a natureza de tal nascimento: has sprouted é a germinação, é o brotar de uma flor.

Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.

Buses, streetcars, steel stream of traffic: steer clear!

Prima do conhecido keep clear, a locução steer clear é ainda mais enfática, com a vantagem de que steer (dirigir, pilotar) ecoa também os próprios vocativos aos quais se destina a ordem: os veículos da cidade: Dirijam longe da flor que nasceu! A propósito, a bela imagem do rio de aço do tráfego vertida para steel stream of traffic gera aliteração e assonância quase que por acaso (ou nem tão por acaso!). Poesia tem disso.

Uma flor ainda desbotada

ilude a polícia, rompe o asfalto.

A flower, still pale

has fooled the police, it's breaking through the asphalt.

Façam completo silêncio, paralisem os negócios,

garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.

Suas pétalas não se abrem.

Seu nome não está nos livros.

É feia. Mas é realmente uma flor.

Let's have complete silence, halt all business,

I swear that a flower has been born.

Aqui, sim, uma flor has been born. Há, na enunciação em inglês, uma novidade que o original não apresenta: afinal, Drummond repete o pretérito nasceu, dando ao leitor a garantia da palavra empenhada lá em cima: uma flor nasceu na rua!

Its colour is uncertain.

It's not showing its petals.

Its name isn't in the books.

It's ugly. But it really is a flower.

Uma curiosidade: na versão que circulou na internet, o verso Sua cor não se percebe era dado por You can't see its color. É comum que o you seja usado para indeterminar o sujeito da oração; contudo, o problema dessa escolha, aqui, seria a perda da inversão da frase, que muito contribui para a beleza da construção. Drummond marca a indeterminação do sujeito com o índice se e joga Sua cor para o início do verso: Sua cor não se percebe. A tradução na voz de Judi Dench parece acertar em cheio na simplicidade: conserva a aparente inversão transformando Its colour em sujeito do predicativo uncertain (Sua cor é incerta). E a diferença entre it's e its? Belo o efeito espontâneo gerado na tradução.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde

e lentamente passo a mão nessa forma insegura.

I sit down on the ground of the nation's capital at 5 in the afternoon

and fondle with my fingers this precarious form.

Passo a mão transforma-se em fondle with my fingers. Dada a forma rudimentar da florzinha, compreensível que nela uma mão ainda não caiba de afago. A tradução é sensível, portanto, ao acariciá-la com os dedos. Nota, no original em português, para a rejeição do possessivo em referência a partes do corpo: passo a mão, e não passo minhao. No inglês, porém, é with my fingers, e não with the fingers.

Outra nota: Para Drummond, a flor tem uma forma insegura. É fato que o poeta, ao escolher insegura para adjetivar a forma da flor, confere a ela quase que um traço de atitude perante a cidade: ela ainda é frágil e tímida entre tanto concreto que a oprime, mesmo que corajosamente o vença. Na tradução, tal insegurança parece receber menor dimensão com a escolha de precarious: não há dúvida de que apenas a forma da flor é precária, tosca. (Ainda assim, precarious form fica lindíssimo no britânico de Judi Dench!)

É feia.

It's ugly.

Um fato: Drummond é perturbador. E por isso a flor é... feia. Nada do que diríamos de uma flor (e daí ela não ter uma forma simplesmente delicada, o que poderia sugerir traços de beleza em botão). É feia, e ponto. E aqui ugly parece ter forte ressonância em precarious: a precariedade em si, mais que a insegurança da forma, é o presságio direto da feiura ela mesma. A tradução achatou um pouquinho a perturbação drummoniana escolhendo vocábulos de relação mais estreita que a existente entre insegura e feia.

Mas é uma flor.

But it's a flower.

Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

It broke through the asphalt, tedium, disgust and hatred.

Drummond não escreve furou o asfalto por acaso. A aliteração do f é marcante, e a tradução se sai muito bem com um jogo de h: through the asphalt.

O tédio, o nojo e o ódio é uma gradação forte de sons e sentimentos, timbres abertos e fechados. Caso a tradução tentasse recriar correspondentes fônicos a esses substantivos, talvez o jogo resultasse em um ou outro desvio semântico. Acertadamente, a tradução ateve-se apenas ao sentido das palavras (que é o visceral aqui!), ainda que, dada essa opção, os timbres de Judi Dench não tenham tido a oportunidade de modular como os de Fernanda Montenegro e sua interpretação de instantes cuidadosamente guturais (e repare como o ódio de pronúncia aberta parece engolir o hatred pequeno e fechado, quando a edição funde as duas vozes). Assim, o poema de um dos nossos maiores poetas, embora entremeado de sua versão traduzida, parece florescer e realizar-se sobretudo, e justamente, na língua portuguesa.


Não é exagero acreditar, portanto, que "A flor e a náusea" seja a poesia perturbadora de uma nação que ainda não encontrou outro adjetivo para si mesma. Afinal, assim como a imagem de uma flor feia vencendo o ódio do asfalto, somos o espelho da nossa própria mensagem olímpica. Em tradução digna para o mundo. Eternamente a florescer.

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Âncora 1
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